No último dia 31 de outubro, foram comemorados os 496 anos da Reforma Protestante. Por conta disso, aconteceram alguns eventos aqui em São Luis e, para prestigiar, optei por um, evidentemente – do contrário, estaria desafiando alguma lei da física.
Geralmente, neste período, as faculdades e/ou seminários teológicos costumam fazer a semana ou jornada teológica direcionada, naturalmente, para o tema. Assim, o Seminário Teológico Batista de São Luís trouxe um orador, o Instituto Teológico Basiléia, salvo engano, em parceria com o Seminário Cristão Evangélico do Norte, outro.
Diante disso, seria oportuno perguntar se a Reforma seria apenas um tema histórico, e, por assim dizer, tratado apenas como um tema acadêmico ou mais um tópico presente na Ementa de alguma disciplina do curso de Teologia? Ou, por outro lado, teria alguma relevância, de natureza espiritual ou outra que seja, e, de certa forma, significativa para os cristãos hoje?
Pergunta respondida magistralmente pelo jovem Rev. Allen Porto que, à primeira vista, pode facilmente confundir alguém que o avalie pela estatura e idade, pois posso assegurar que lhe são inversamente proporcionais à inteligência e devoção.
Em uma fala envolvente, leve e, em alguns momentos, descontraída tratava, com a devida seriedade, de um tema relevante para a Igreja Cristã hodierna. Com peculiar naturalidade e notório domínio, contou-nos, pontualmente, aquilo que o escasso tempo lhe permitia dizer, sobre a história da Reforma e de seus Reformadores.
Revisitou pontos consensuais ao passo que também teceu críticas pertinentes ao significado histórico do processo e de sua repercussão dentro e fora da Igreja, como, por exemplo, o que se convencionou chamar de “Contra Reforma”. Resumiria toda minha impressão em uma palavra: Brilhante!
Entretanto, naturalmente como era de se esperar e eu não poderia deixar de mencionar, falar de Reforma, em sentido amplo, é falar também de História, e isto vislumbra um imbricado conjunto de implicações e considerações impeticáveis. Vejamos a seguir algumas reverberações.
A princípio, a escrita da história é permeada de elementos por demais subjetivos que são determinantes na sua elaboração. E, consequentemente, as interpretações sobre os escritos não fogem ao campo da análise do discurso e de suas respectivas problematizações.
Não levar isso em consideração é no mínimo admitir que, para os interlocutores, isto seja algo autoevidente, e, portanto, desnecessária a explicação. Ou então, correr o sério risco de se formular um discurso histórico, e também sobre a história, em que se esteja completamente imbuído da pretensa isenção deste corolário.
Falar da História (lato e stricto sensu) é antes de tudo ler e interpretar o que anteriormente foi registrado de forma verbal ou não. Nem mesmo o próprio ato de registrar escapa do processo interpretativo e seletivo de quem registra. Isto implica numa série ou sequência de interpretações que na medida em que se distanciam uma das outras, numérica e cronologicamente, mais as chances possíveis de tangenciar algo de realmente concreto ou próximo do que aconteceu são reduzidas.
Assim, considerando que a Reforma Protestante foi e é um evento histórico, as informações que sobre ela chegaram até nós passaram primeiramente pelo “olhar” dos que estiveram direta ou indiretamente envolvidos no processo. Posteriormente, os primeiros “historiadores” da Reforma, juntamente com suas respectivas cosmovisões e idiossincrasias, interpretaram o mesmo processo, a partir de seus referenciais sociais, políticos e culturais inerentes ao contexto histórico, outrora distinto, por eles vivido.
Neste esteio, talvez seja impossível determinar com precisão o teor de, na ausência de um termo mais adequado, “contaminação” das fontes de uma geração de historiadores para outra. E isto sem mencionar o problema da multiplicidade das versões sobre o mesmo fato histórico que é por si só outro problema de considerável grau de complexidade e que escapa, nesta oportunidade, ao objeto desta singela análise.
De lá para cá quantos historiadores escreveram sobre a Reforma, seja para revisitar aspectos há muito “esquecidos” ou, em uma perspectiva mais pós-moderna, para desconstruir as “verdades” consolidadas por uma certa tradição historiográfica?
Contudo, não se trata de um problema intrinsecamente ligado à história e historiografia da Reforma, mas, acima de tudo, inerente à própria questão epistemológica da “ciência” histórica ou até mesmo da possibilidade do conhecimento histórico tal qual como foi e é construído.
Não obstante, atendo a questão suscitada no início, revisitar o tema da Reforma da Igreja no XVI e de seus Reformadores, incluindo aqui também seus precursores, não escaparia da tentativa de buscar na história as raízes para a afirmação de uma identidade de cristão reformado. Salvo engano ou melhor entendimento, o reformado é aquele que, entre outras coisas, tem profunda afinidade com o evento histórico de 31 de outubro de 1517 e seus desdobramentos e, principalmente, com o pensamento de um de seus maiores expoentes, João Calvino, e daí calvinistas.
Há de se ponderar que os problemas decorrentes de toda e qualquer identidade que se pretenda histórica passam necessariamente pelos mesmos graus de suscetibilidade em que estão submetidos os processos de escrita da história enunciados há pouco. Desta maneira, reconhecer-se enquanto reformado não se torna muito diferente de reconhecer-se cristão, pois requer anteriormente que se percorra todo um caminho onde seja possível determinar de que cristianismo se esteja falando e de qual reformador se inspira ou fundamenta.
Para encerrar, não no sentido de se pôr um ponto final na discussão, mas pelo contrário dar a oportunidade para que se inicie um debate sadio, e para não correr o risco de continuar sendo por demais prolixo ou excessivamente tautológico, sinalizo a seguir aquilo que entendo ser as considerações finais deste ensaio.
Portanto, considero que seja por demais incerto, impreciso e perigoso fundamentar-se no discurso histórico a respeito de qualquer tema e sob qualquer finalidade, pois, como tentei elucidar acima, seria por similitude como construir uma casa sobre a areia, acreditando-se estar sobre a rocha diante de uma forte e iminente tempestade.
Bibliografia sugerida:
CERTEAU, Michel de. A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982. (Indico o excelente e elucidativo texto “Operação Historiográfica”)
JENKINS, Keith. A História Repensada. 3ª ed., São Paulo: Contexto, 2005. (O livro todo, sobretudo o capítulo “O que é a História?”)
NIETZSCHE, Friedrich. Escritos sobre História. Rio de Janeiro: Ed, PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2005. (Parte I – Fatum e História e também a Parte II – Consideração Intempestiva sobre a utilidade e os inconvenientes da História para a vida)